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Banalização, de Rui Trancoso.

  • Texto de Rui Trancoso
  • 25 de out. de 2018
  • 4 min de leitura

No balcão do Evil Garage Bar conheci Rui Trancoso, jornalista, escritor de tarimba e conversa fácil. Logo falamos de literatura e do blog. Com muita satisfação, e de depois de um boa dose de minha insistência irritante, recebo o conto dele para que eu jamais me esqueça...Obrigado Rui pela honra!


BANALIZAÇÃO


"O jantar transcorria, como sempre, num quase silêncio sepulcral, quebrado pela TV, que encarapitada junto ao micro-ondas, jorrava imagens e vozes aos borbotões. Tudo misturado à sacia pelo arroz, batatas e peixe. Fosse a tv um Deus ex machina, o clima seria de quase persignação; o aparelho diluindo e sugerindo modos de vida. Sem perder de vista os garfos e facas, os 4 olhavam para a TV sem que lhes perpassasse pelos rostos quaisquer vincos de emoção. Lancetavam-se as inconveniências ouvidas. A mãe era a exceção, pois professora de escola pública, andava quase sempre com o semblante crispado, e imagens de violência acentuavam-lhe as poucas rugas. Testemunhavam mortes ocorridas há pouco, resultados do futebol, previsão do tempo e as infindáveis e nauseantes notícias sobre assaltos às arcas públicas por engravatados de todos os matizes ideológicos. Ideologias estas inexistentes ou esgarçadas. Deu-se o intervalo com “compre”, “alugue”, “inscreva-se”, “aproveite...tudo saltando da tela de forma tentacular, enroscando-se permissivamente nos comensais. Os jovens balbuciaram algo sobre uma nova bicicleta e jogos eletrônicos. Os pais contrapuseram, sem muita convicção, sobre as notas escolares irregulares. Não havia, no entanto, qualquer sinal de reprimenda ou cenho franzido. Era o reclamar por reclamar. Puro rito em um mundinho de prozac e conveniência. A tv reincidia no despejo de infortúnios: desemprego, guerras aqui e acolá, com desfiles de criaturas andrajosas, negras ou amarelas, cujo grande número causava a mesma emoção de uma boiada a caminho do frigorífico, olhada ao longe.Todos viam e ouviam com considerável distanciamento, com somente maior atenção em um ou outro comercial. O pai zapeou rapidamente por vários canais, que se não noticiavam também, ensejavam mostrar algum tipo de pão e circo. Boa parte apresentava pregadores que ofereciam a felicidade em troca de dízimos generosos. Os adolescentes após o jantar iriam ao shopping, e agora comiam apressadamente um peixe besuntado em óleo, trazendo uma certa desordem e lambança aos guardanapos. Pararam ao ouvir a notícia de um assalto a uma família, próximo ao shopping onde pretendiam ir. Pertences se foram e uma vida fora aniquilada. Por próximo, o incidente causou um incômodo geral, desestabilizando a rotina marmorizada. À sobremesa uma sensacional TV plasma 3D estava sendo anunciada, acompanhada da já nauseante palavra “imperdível”. Todos olharam para o pai quase simultaneamente, que deu de ombros, como a dizer que a algibeira estava bem vazia. Repentinamente um lapso na energia. Tudo às escuras. Arrastar de cadeiras. Abertura de portas e gavetas; apareceu uma lúgubre vela trazida pela mãe ao longo do corredor. Espreitaram pela janela, e só viram o entremear de faróis. A primeira preocupação foi pela demora do blackout. A rotina não era inconveniente; a falta de energia sim. Reduzia-lhes o mundo substancialmente. O poder hipnótico da TV estava desativado. Ficaram poucos minutos como estátuas. E neste pouco tempo o garoto já trazia um áudio ao pescoço, e após meia hora, já havia desaparecido a expectativa do passeio. Arranjaram-se, cada um a seu modo, nas cadeiras e sofás da sala. A luz de cerca de 10 velas tornava o ambiente fúnebre. Não por seu efeito vacilante, mas pelas expressões de desapontamento, enfado e tédio. Repentinamente batidas secas à porta e “um quem será?” uníssono. A polícia se anunciava, questionando se estavam bem e informando que havia dois meliantes em fuga no bairro. Passos apressados, barulho de sirenes e espocar de meia dúzia de tiros. Entreolharam-se, e o pai foi vistoriar cuidadosamente portas e janelas. Desapareceu no corredor com a cera de uma vela queimando-lhe a mão. De repente nem sirenes, nem vozes, nem motores. Apenas um silêncio que fazia com que pela cabeça de cada um passasse um sem número de seus medos e fantasmas mais recônditos. O cão do vizinho começara a ladrar insistentemente. Mais um sinal de alvoroço para alimentar o receio dos quatro. O pai tentou aproveitar a situação para contar passagens da família, mas já prevendo pouco sucesso. Era uma tentativa de provocar algum tipo de diálogo que trouxesse um mínimo de sentido de união. Foi interrompido pelo garoto com algum gracejo em tom zombeteiro. Tentara amenizar o momento, e talvez, somente talvez, transformar aqueles instantes em algo que pudesse transformar as suas existências insossas no estabelecimento de um novo paradigma familiar. Algo que realmente nem ele mesmo acreditava que pudesse realizar.A garota descerrou levemente a cortina da sala para constatar que o mundo fora de casa continuava um breu. Ouviram um barulho no telhado. “Pode ser um gato”, insinuou a garota. “Pode ser o cara que vai te matar”, despejou sem pena o garoto. “Parem de asneiras” vociferou a mãe, mas sem qualquer certeza sobre a origem do barulho. Ouviu-se um zunido lá fora. Começou a ventar forte pensou o pai. Duas horas já haviam se passado. O clima de insegurança já havia sido vencido, pois afinal nada mais ocorrera que os perturbasse, e o barulho no telhado fora esquecido. O pai sugeriu que fossem dormir, pois a luz talvez não voltasse. Nisso como se fosse para indispô-lo perante a família, as lâmpadas acenderam e com ela o desprezo sobre a possibilidade de haver um bando de facínoras no quintal. O ar da sala ficou impregnado com um cheiro de velório, tal a rapidez com que as velas haviam sido sopradas. A TV voltou instantaneamente a chamar a atenção. Em poucos minutos, como se a família fosse movida a eletricidade, retornaram ao seu confortável autismo existencial. O garoto continuou ouvindo o som embrenhado na sua orelha. A garota tentou trocar de canal, mas o pai, aparentemente cansado, desligou a TV sob protestos. A mãe foi cuidar da cozinha."

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