top of page

mudam-se os tempos; os ventos...

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 17 de out. de 2020
  • 3 min de leitura

ree

Houve um tempo em que os pais restringiam o tempo de seus filhos na rua, só na TV aberta, videogames, ou ainda mesmo o tempo em que a família os enviava para os internatos.


Houve um tempo que os pais trabalhavam longe de seus filhos.


Para trabalhar o sustento, para viver a necessária aventura da sobrevivência. As cartas demoravam a chegar. Nada era imediato. Hoje a treta é para mostrar para as minhas filhas que há vida além do celular. Maldição! Vejo-me constantemente restringindo o tempo delas das telinhas. Com menor frequência do Youtube e Netflix. Mas não o tempo na rua, de rua. Muito menos serão enviadas para estudarem a mais de dez quilômetros de mim.


Neste exato e tardio momento em que escrevo a crônica coloquei a minha caixa de som no quarto delas tocando Lucio Dalla na potência mais alta. Lógico que elas não gostam dessa música. É de propósito.


Abro toda a janela e elas nem se mexem. Devem ter ido dormir de madrugada e saberei daqui a pouco o que elas aprontaram mais exatamente. Despertei no meio da noite com as duas sorrateiramente subindo no topo do armário do meu quarto. Acordei e vi uma escada. –


-Mas que que é isso, vocês estão de brincadeira? Só pode ser um pesadelo! Sumam já daqui! Vão dormir.


E desapareceram com a mesma velocidade com que eu retornei ao sono. Crianças sempre vão na direção da alegria, do prazer, do descompromisso de uma brincadeira que não trará nenhum benefício além do presente. Têm muito tempo pela frente ainda. Ainda bem que não estavam no tik tok e sim fazendo alguma arte, ao menos. Dizem que agora é diferente. O tal do algoritmo, esse capeta moderno, faz com que criem dependência e que, paulatinamente, forjem personalidades e consciências de acordo com os pagantes dos fornecedores desses aplicativos.


Quando é de graça o produto é você.


Bom, a rua sempre foi de graça e perigosa, a TV aberta sempre foi de graça e conduzida no Brasil por três ou quatro emissoras que “monopolizaram” o jornalismo e o entretenimento por décadas em nosso país. O que eu chamo de consciência de novela, por exemplo, na área do lazer. Decidi eu mesmo reformar o tampo da mesa da minha sala; de garapeira. Já na fase da colagem, dei-me conta de que não sabia destravar a catraca que fixava.


-Pai, peraí, já vou ver no youtube.


Em menos de três minutos um vídeo passava na tela me mostrando – didática e demoradamente – como destravar a catraca. ­


– Obrigado, filha.


Sei que é polêmico. Gosto muito de uma frase para essas reflexões...quando observo essas mudanças todas. Mudam-se os tempos, mudam-se os ventos. Deve ser de alguma poesia ou uma variação de Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades de Camões:

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía."

Reparem nesta frase: diferentes em tudo da esperança.


As mudanças jamais são completamente reconfortantes porque assim fosse não seriam mudanças.


– Por que não, pai?


-Porque a vida é feita de tudo um pouco. Farinha não se faz sozinha pão.


Se esse algoritmo é mesmo o capeta tenho minhas dúvidas. O que me preocupa, como pai, é ajustar o meu algoritmo para que elas tenham experiências múltiplas - e às vezes o faço as obrigando mesmo com base também no pacote de benefícios.


O youtube depois da leitura.


O celular depois de lavar a louça.


O celular de hoje foi a minha rua de ontem.


Não tem melhor, não tem pior.


É o que há. Pensávamos mesmo que toda essa tecnologia vídeo-catraca que nos libertou da consciência de novela, com as crianças cada vez mais longe das ruas nas grandes cidades, viria sem ônus para os pais? Para nós?


Lúcio Dalla é incrível!


Acordaram.


Tenho que sair para comprar carne para o churrasco.

Comentários


@2025 - Todos os Direitos Reservados - ANTES QUE EU ME ESQUEÇA - CRÔNICAS E ESCRITAS - From WWEBDigital

bottom of page