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Kabum!

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 26 de out.
  • 4 min de leitura
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Deu-se numa sexta-feira normal no escritório; com pessoas normais. Numa reunião normal de transação imobiliária normal. Por algum acidente nas tratativas, lembramos da história extraordinária dos irmãos Ramos que fundaram a empresa KaBuM em Limeira. Alienada para o Magazine Luiza, acabou em disputa judicial contra o Itaú BBA que fora contratado para assessorar a empresa na venda para gigantes do mercado varejista.


Jamais usem pretérito mais-que-perfeito do indicativo - fora - numa crônica. Confesso que reformulei quase que uma dezena de tentativas em vão; por algum motivo que desconheço ainda.

Briga grande de gente grande; nada trivial.


Ambos representados por dois renomados escritórios de advocacia. Já tinha lido o processo mas só recentemente consegui ler a decisão do STJ sobre o assunto autorizando o prosseguimento da ação para a produção antecipada de provas.


Mas não falaremos dos aspectos jurídicos deste processo, não neste palco. Também os leitores de crônicas não estão para o juridiquês. É demais para um domingo. No meio dessa reunião, arrepiado ao lembrar da petição inicial, disse aos presentes: não é um processo, é um romance! Ou uma tragédia, pensei depois, ainda não sabemos. Ao menos até o capítulo atual.


Arrepiado porque magistralmente bem escrita e nomeada pelos advogados em capítulos, os mesmos que poderiam ser de um romance em nossa estante. Impecável. Irretocável. Não basta conhecer os fatos, é preciso saber contá-los. A petição inicial, embora termo técnico e com requisitos científicos, nada mais é do que uma obra literária na parte fática.


Não há processo judicial sem história. São pessoas atrás dos nomes; lembremos. Passaram por uma experiência na vida que agora precisam contar ao Poder Judiciário. A inicial dos Ramos nada mais é do que a própria história da empresa que criaram, seus anseios, conquistas e decepções. Em capítulos que poderiam formar o próprio livro de suas vidas um dia, como A incrível e improvável história da Kabum; O plano de abrir o capital da Kabum que se tornou o plano de vender a empresa para grandes varejistas; Barba, cabelo e bigode, este último já adentrando ao conflito central do problema, que não é o nosso assunto. Até porque a história no processo judicial tem sempre duas versões subjugadas pelas provas e acobertadas ambas pela ampla defesa e pelo devido processo legal.


A diferença da petição inicial e de um romance é nenhuma, exceto pelo fato de que o autor daquela precisa envolver o Juiz e não os leitores. Eu sou obcecado pela primeira frase, primeiro parágrafo, de toda obra literária. É, pra mim, um momento de êxtase...o prenúncio do porvir que, lido em retrospectiva como capítulo final, muito nos adianta sobre o tema central da obra. Sempre esteve tudo ali; no princípio.


"Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde esa subcrecretário bongava pelas confeitarias algumas frutas, compra um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa."


"Mas às vezes os sons - e a dor - sumiam, e então só havia a névoa. Ele se lembrava da escuridão: trevas sólidas antes da névoa. Aquilo significava que ele estava fazendo progressos? Faça-se a luz (ainda que eneovada), e a luz era boa, e tudo mais? Aqueles sons tinham exisitido nas trevas? Ele não sabia responder nenhuma daquelas perguntas. Fazia sentido perguntar? Ele também não sabia dizer. A dor ficava a leste do sol e a sul de seus ouvidos. Isso era tudo o que ele sabia."


"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre as suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulava desamparadas diante dos seus olhos."


"Numa maravilhosa noite de julho extraordinariamente cálida, um rapaz deixou o quarto que ocupava na mansarda de um vasto edifício de cinco andares no bairro de S...e lentamente, com ar indeciso, se encaminhou para ponte de K... Teve a felicidade de não encontrar na escada a senhoria, que morava no andar inferior. A cozinha, cuja porta estava sempre escancarada, dava para a escadaria. Sempre que se ausentava, via-se o moço na contingência de afrontar as baterias do inimigo, humilhava e lhe carregava o sobrecenho. Devia uma quantia considerável à locatária e receava encontrá-la"


Kabum! É o instante em que um clássico nasce. A ideia bruta. A dor intensa e o ímpeto de contar uma história. Exceto louca obsessão talvez, os demais não sabiam que se tornariam clássicos. Eu não tenho condições hoje de fazer essa análise mais acurada, quem sabe algum literato possa confirmar algum dia.



Todos eles, porém, tinham certeza de que a história precisaria ser contada. Dos processos judiciais ou dos livros, elas devem terminar com um ponto final para que possam ser escritas. Tudo nesta vida termina com um ponto final, talvez venha daí o meu uso excessivo pelo ponto e vírgula; do desejo de escrever mais um capítulo antes que a história transite em julgado.


Afinal, Montaigne, escrever não causa sofrimento, mas é fruto de sofrimento...











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