A velhice é a força resultante de uma certa vida.
Sabia que algum dia eu usaria os conceitos de Mecânica para além do vestibular, de uma finalidade imediata. Talvez este campo da Física tenha sido o único que verdadeiramente tenha gostado de estudar em exatas. Por razões que ainda desconheço, encontrar o vetor resultante das forças que atuam sobre um certo corpo me fascinava. Alguma tentativa precoce de racionalizar o caos? A dinâmica da aceleração; como saímos de um ponto ao outro, em qual direção, sentido e intensidade.
Somos hoje a resultante de ontem. Da atuação de nossa força de vontade com as forças do Universo que sobre nós atuam; como somos no tempo e no espaço. É mais fácil escorregar no piso liso e molhado pela chuva. Chega de divagação, a crônica não é metafísica. Esse paralelo veio depois que assisti Humberto D., de Vittorio de Sica, de 1952, que mostra a velhice miserável de um funcionário público aposentado.
Sem dinheiro. Sem família. Sem amigos. Sem respeito.
Um problema ambulante.
O filme começa com uma passeata reivindicando melhoras na aposentadoria. Ele aluga um quarto numa pocilga onde a dona o empresta para amantes, vê-se obrigado a vender seus livros e a mendigar para melhorar a sua vida. Tenta conversar com dois "amigos" que ainda trabalham mas é solenemente ignorado. Uma das cenas mais marcantes dá-se defronte ao Pantheon, onde o ônibus com seu colega enfim vai embora para interromper uma conversa constrangedora. O filme aborda as humilhações da velhice. Se fosse hoje, por aqui, certamente uma cena mostraria os descontos indevidos na aposentadoria do INSS.
Eu não abandonarei meus amigos na velhice.
Não conto com a aposentadoria do INSS. Vou estragar meus netos, não muito; seus pais que se virem para consertar. Nada mais gratificante do que dar um bolo de chocolate pros netos depois da proibição expressa da mãe. Escondido. E arremato:
-Não fui eu, hein!
Se eu não tiver netos? Estrago os do vizinho, dos netos dos meus amigos. Haverá algum neto ao meu redor. Meu avô paterno era culto e inquieto. O materno, sábio e bem humorado. Irritava-me chamado de Jackasola, Mercúrio e ainda arrematava:
-Conhece o Jacka? Primo do Sola, amigo do Mercúrio?
Era o que bastava pra irritar. E muito. Talvez estivesse me alertando desde cedo para não me estressar com aquilo que não podemos mudar; o inevitável é uma das forças que nos impulsiona. De onde ele tirava esses nomes...? Depois dele nunca mais o ouvi. Jackasola! Não deve haver um único registro de nascimento assim; Jackasola Mercúrio então!
Não pretendo ser rabugento; um pouco talvez. As manias estarão lá, agravadas e irritantes. Vou reclamar, não muito. Não há velho que se preze que não reclame da vida; não muito. Dominó na praça? Difícil. Aposentar-se não é parar; é só o tempo de aproveitar a vida de um modo diferente. Observar mais que falar. Relevar as aporrinhações mais do que esbravejar. Viajar mais que ficar. Ou ficar mais que viajar. Eu devo escrever mais do que falar, por exemplo, para alegria de muitos. Não pela escrita, mas pelo silêncio da minha voz alta e irritante.
Ah, se homens, pedirei para as minhas filhas darem o nome de Jackasola. Que final de vida incrível ao ouvir meu neto dizendo...
-My name is Jacka, Jacka Sola!
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