Minha avó Cidinha não tinha medo da morte.
-Vou encontrar com o seu avô no céu.
Acordei cedo neste Domingo último e me deparei com a missa do Padre Marcelo na televisão; inusitado. Muito raramente ligo a TV de manhã, ainda mais no Domingo, ainda mais em rede aberta, ainda mais na Globo. Minha avó não perdia as suas transmissões e era fã dele. Olha, que Padre carismático viu! Depois de um pai nosso cantado, entoaram uma música “Meu lugar é o céu e é lá que eu quero morar”.
De pronto eu olhei para o céu e procurei a minha avó.
Nada; nenhuma nuvem ao menos que lembrasse as suas feições; ao menos numa primeira mirada. Logo entendi, é impossível estar em dois lugares ao mesmo tempo. Se ela estava dentro da minha geladeira não poderia estar no céu. Ao menos em conceitos físicos e terrenos. Minha avó, baixinha e ligeiramente corcunda, cabe perfeitamente dentro da minha geladeira. Mas, em forma de Sardella dentro de um pote, ocupa ainda menos espaço.
Fiz a receita com as minhas memórias, de vê-la fazendo, e com a anotação em seu caderno que meu irmão mandou. Eu gostaria de acreditar que meu lugar é o céu e que lá ainda encontraremos entes queridos que já se foram. Se bem que, antes, gostaria de saber se lá chegando encontraremos só os entes próximos ou todos que já se foram e eu nem conheci, tipo meu bisavô italiano.
Aqui as perguntas começam e não terminam jamais.
Acreditar em vida após a morte, em suas diversas concepções religiosas, desde o retorno em forma de barata para os espíritos ruins de acordo com o Budismo ou uma passagem no purgatório para a religião Católica, afeta diretamente o nosso comportamento em nossa existência terrena, de acordo com as crenças individuais que todos nós temos o direito de tê-las; e respeitadas.
A minha avó voltou Sardella; tenho quase certeza.
Por muito tempo achei que ela teria voltado Alichella.
Até que eu fiz a Sardella e tudo mudou. E, agora, ando preocupado porque já há algum tempo não me sai da cabeça a receita de pimentões verdes recheados com a azeitona surpresa; que poderia ou não ser incluída. A vida após a morte é como o destino dessa azeitona; além de acreditar é preciso achá-la. E agora o Padre Marcelo logo cedo na TV, tô achando que é um sinal a confirmar que a receita escolhida por ela mesma para seu retorno foi mesmo a de pimentão verde.
Quando olho para o horizonte daqui onde escrevo vejo uma montanha verde. Quando junto tudo, o Pe. Marcelo, o verde da montanha e a Sardella na geladeira só pode ser uma tentativa de comunicação que me chega como sinal de dúvida.
Eita, será que minha avó quer voltar azeitona?
Vou fazer essa receita dos pimentões de uma vez ouvindo Roberto Carlos, seu cantor preferido, para aprimorar as minhas convicções sobre o seu retorno. Se eu fosse pela lógica seria lasanha; só acho complicado ficar aplicando leis científicas para a vida após a morte. Vou terminar de comer a Sardella hoje regada a um bom azeite e farei os pimentões, pronto! Depois, na dúvida eu farei a lasanha que ela costumava fazer. Como não tinha pensado nisso antes? Em vez de fazer as receitas picadas, para não ter nenhuma dúvida, faço a Sardella e a Alichella de entrada, pimentões verdes e lasanha. Boto Pe. Marcelo e já emendo um Roberto Carlos.
Pronto, só falta puxar uma cadeira pra ela se sentar.
Vó, você até pode estar aí no céu. Respeito. Mas que você anda escapando e passeando aqui em casa toda vez que eu faço uma de suas receitas e coloco Roberto Carlos não tenho nenhuma dúvida.
A propósito, o vovô vem também? Peça para ele mandar um sinal, mas não em forma de peido por favor.
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