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Filhas: minha crônica testamento...

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 5 de set. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de out.

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Gosto mais da expressão em inglês, will, que nos remete à vontade, do que o nosso testamento, que se vincula à escritura sagrada, à religião. Acordei de sonos intranquilos às 07:06, o mesmo que 6:66, e logo me dei conta de que não deixei nenhuma notinha ou algumas palavras acaso eu morra precocemente. Não definiremos precocemente neste momento.


Antes que me acusem de falastrão sensacionalista, de se utilizar da tristeza e alegrias alheias dos sobreviventes para escrever, confiro à presente a natureza de testamento particular e, desde já, invoco circunstâncias excepcionais (COVID19) nos exatos termos do Art. 1.879 do Código Civil. Esta é a minha real vontade, solicitando desde já a relativização do Art. 1.876 do Código Civil, ademais na esteira do novel entendimento do STJ no REsp 1633254.


Leitores que não são do ramo ignorem as disposições de última vontade e leiam como se eu estivesse fazendo mais uma crônica; uma qualquer. Sem mais delongas, vamos às disposições porque são poucas e não devem exceder a mil palavras já considerada a introdução.


Estou em pleno juízo de minhas faculdades mentais. Sóbrio.


Seria melhor enumerá-las. A ordem é aleatória, não estão em juízo de importância:


1) Depois da cremação, tristes ou não, no máximo dentro de uma semana, peço a todos os meus amigos que façam um churrasco com no mínimo cinco pessoas. Aglomerem-se se isso lhes for possível sem risco próprio. Minha morte é motivo de festa; jamais de tristeza. Estou no lucro desde o meu primeiro respiro com vida.


2) A playlist adequada se encontra no meu Spotify e se chama #foidocaralho. É pública. Colocarei dez músicas tão somente; acrescentem quantas quiserem depois.


3) Filhas, vocês são herdeiras necessárias da grande fortuna que estou deixando pra vocês; incluindo as panelas de ferro. Cuidem delas por favor, usem-na e hidrate-as com óleo de coco no Natal. Conversem com elas. As coisas não são tão inanimadas quanto parecem. Lembrem-se que há uma crônica específica sobre como passá-las adiante por gerações aqui no Blog; que está pago por cinco anos.


4) O teu tio Luiz e a tua tia Luciana tem as minhas senhas e algumas instruções de ordem prática; essas chatices que fazem parte da vida. Não adianta reclamar. Se precisarem de alguma ajuda além da família, peçam ao Felipe, ao Edmar ou ao Silvino.


5) Lego a minha moto ao meu irmão Luiz Alberto. Para a tia Lu, minha irmã Luciana Camacho, lego os temperos que estão na cozinha. No canto ao lado do filtro deixei um que fiz especialmente pra ela, não tem como errar, se chama CF, e é abreviação de Couve Flor. Para que ela a faça como papai fazia, mas com as minhas adaptações. Debaixo do pote tem os ingredientes para que ela o reformule se gostar.


6) Continuem o nosso combinado de ler ao menos um livro por mês; a vida é um pouco chata sem eles; por detrás de cada capa há um portal para outra dimensão.


7) Fogo. Quero ser cremado e virar pó. Não deixem os vermes me comerem debaixo da terra. Por favor. Confesso que ainda não vi os detalhes, mas eu deixarei algum esquema prático para que seja mais fácil. As cinzas, né? Distribua as cinzas em potinhos e entregue a quem os queiram. Aí eles podem fazer o que bem entenderem, temperarem a carne, botarem no drink, ou lançarem na estrada a caminho do mar ou da montanha. Não insistam, só entregue a quem o receber de bom grado.


8) Filhas, não deixarei aqui conselhos como "dancem na chuva", "carpe diem", "sejam isso, sejam aquilo". Desonero-as desse encargo. O máximo que deixarei: "vivam!". Pronto. Da forma como acharem que seja melhor viver. Estou de consciência tranquila. Dei o melhor de mim. Não deixei para amá-las jamais no dia seguinte.


9) Se entenderem que fui precocemente, não lamentem jamais a minha morte. Não ousem utilizá-la para alimentar eventuais frustrações que vocês venham enfrentar na vida. Achar desculpas é atitude que vocês duas jamais devem se valer. Encarem a vida como um flip rodante.


10) A vida vai distanciar vocês de seus primos e de meu afilhado Julinho. Esforcem-se para que não seja a tal ponto de tê-los como estranhos. Vá às tais festinhas de aniversário ainda que sejam muitas delas aparentemente chatas. É no seio de seus familiares que você terá mais sentido do que nunca.


11) Botem música no velório, achem um lugar que o permita. Não sabemos para onde irei, mas posso lhes garantir que nada será mais deprimente que olhar meu corpo de cima e ver um monte de gente chorando ao ver meu corpo tombado em vez de rindo, cantando e contando história de tudo que eu vivi. Filosofar é aprender a morrer, não é? Como diz a famosa frase de Montaigne.


Quando, pensando, me dei conta de como eu me joguei na vida, de como foi essa transa toda, eu conclui que poucos teriam sido os meus ajustes e, assim, dentro da margem de tolerância de nossa existência.


Aos que emocionei em minha jornada, um brinde. Aos que decepcionei, rogo-lhes compreensão porque vai passar.


Ah, filhas, e como sempre lhes contei, sobre as inúmeras vidas que tive ao longo desses milhões de anos, eu voltarei. O grande barato é que nunca saberemos como, nem quando, nem onde. Foi do caralho!


Ah, como se precisasse repetir o que já disse centenas de vezes; eu nunca estive fora do coração de vocês. Portanto, a ausência material é só um sentimento passageiro.


Ah, algo me diz que terei que escrever mais um monte destas.


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