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Tudo bem, é só uma vez por ano...

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 4 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

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- Mas se você ganhar na loteria, ou na mega-sena, o que você compraria sem pestanejar?


- Listerine, respondi. De litro. Eu beberia Listerine sem engolir.


A pergunta é hipotética. A minha resposta é autêntica. Qualquer pessoa poderia ter feito essa pergunta. Peguei-me com essa ideia besta depois que mudaram os frascos de Listerines coloridos de lugar no supermercado. Dei de cara com eles. Estavam todos lá: o rosinha, o verdinho e o balinha. Deles escapo com frequência mas desta vez não teve jeito. No mais das vezes compro o concorrente ou me convenço de que não preciso dele depois de uma boa escovação. Nalgum dia de minha vida eu notei que era muito caro. Depois, com o tempo, dei-me conta de que o custo-benefício na verdade me era proibitivo, ainda que o frasco insistisse em me dizer o contrário ao conceder uns emeéles a mais.


Podia comprá-lo mas lidar com a sua efêmera existência jamais.


Tornou-se, para mim, o dilema do mousse de chocolate.


Já não durava dois dias o litro e meio.


Após a escovação. Antes da escovação. Para beber uma água gelada. Depois de beber a água gelada. Ao acordar. No meio da noite para tirar aquele sabor de insônia. Para ir ao trabalho, ao cinema e antes da corridinha matinal. Naquela perambulada à toa pela casa quando a gente não sabe o que fazer. O cigarro do fumante. O trago do bebum. Bastava uma rapidinha no banheiro e saia respirando profunda, ardida e levemente. Lembro-me de quando experimentei a primeira vez; talvez ali tivesse tido a primeira sensação de autopunição voluntária. Primeiro um gole. O segundo. E vai ardendo. E vai queimando. E você insistindo em deixar mais um pouco.


Quando ele enfim é lançado na pia, você já pensa que tá na hora de bochechar mais uma dose. Olhe só. Quando a gente usa essa expressão - dose - estamos efetivamente admitindo a consumação do vício. E, assim, quanto mais eu comprava eu percebia a efemeridade daquela sensação. Deve ter sido nessa fase que eu percebi que a relação do custo-benefício para mim não seria nunca benéfica.


Eu olhava o preço e pensava quanto tempo iria durar.


Em valores atuais R$ 19,00 em dois dias.


Quase um vício tabagista. E - deixemos claro - nada há no produto que sugira dependência - senão eu mesmo que doentiamente me delicio com aquela sensação de que a vida é bela! Percebi que poderia me arruinar e passei então a evitar as tais prateleiras de Listerine. Um dia ouvi que tinha ficado mais suave. Uma semana depois fui lá para ver se tinham mudado a fórmula.


Recaída.


O meu vício continuava o mesmo.


Comprei logo o maior e me entreguei sem economia no consumo excessivo. A esbórnia. O regaço. Quando eu estava com o vício praticamente sob controle começaram a colocar Listerine em restaurantes e bares.


A sociedade não ajuda.


Eu não acreditei na primeira vez que eu vi aquela embalagem suspensa com um copinho ao lado. Nunca fui tantas vezes ao banheiro como naquela noite.


- Como pode o dono de um estabelecimento em sã consciência franquear essa bebida no banheiro?


Sim, a marca ganha com a publicidade, mas o dono do trem - mesmo pagando menos - será arruinado se mais dois clientes como eu fossem habitués. Numa das vezes arranquei o dosador e virei o frasco direto na boca. Nada de nojo! Foi sem encostar. Logo já sabia de cor quais tinham essa cortesia e quais estavam misturando com água. Ah, fiquei revoltado quando percebi que estavam adulterando a substância. O efeito não era o mesmo. Não dava o barato. O restaurante ficava em São Paulo, em Moema. Não me lembro o nome. Ou não quero me lembrar. Fui falar com o gerente.


- Olhe, não é por nada não, mas vocês estão sabendo que estão adulterando o Listerine do banheiro? Alguém está colocando água para render mais!


Fiz a minha parte.


Reparem, somente substâncias muito valorizadas no mercado são adulteradas, o que era um sinal claro de que realmente eu precisaria me policiar e não comprar assim na esteira desenfreada do desejo capitalista. Certa feita fui numa casa chique que tinha Listerine à disposição no banheiro de visitas. Aí então eu associei em definitivo o produto à nobreza.


- Estava bom o jantar?

- Uma delícia, com Listerine então para depois do café!


Lógico que eu nunca disse isso. Mas pensei. O risoto poderia estar sem sal...mas com Listerine no lavabo meu amigo...eu volto pra jantar. Logo então sabia os locais que disponibilizavam o produto em suas dependências. E aí que eu parei de comprar mesmo. O negócio era bochechar na casa dos amigos e restaurantes.


A um só tempo matava dois problemas: o do custo e da frequência. Não, nunca cheguei a furtar Listerine. Por isso eu os evito nessas estantes malignas do supermercado. Não gostaria de voltar para a minha fase de adicto. Uma vez por ano eu me dou ao luxo de comprar um frasco, sab? É a medida. E faço disso um certo jogo para que o produto, a cada ano, dure mais e mais um pouco. Primeiro aprendi a esconder debaixo da pia e esquecer que ele está lá. Depois, eu passei a escolher só um momento do dia para saboreá-lo.


Hoje estou com o vício bem controlado. Um frasco de 250 ml dura uma semana. Está ótimo. Quiça eu consiga manter essa média de consumo até os sessenta. Ou, até que eu ganhe o premio na Loteria. Se isso ocorrer não me furtarei à responsabilidade social de fundar a associação dos consumidores imoderados de Listerine.


Dá licença agora que estou nessa semana única do ano.


Todo término de crônica merece uma bochechada.

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