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a kafkiana

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 11 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

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Conheci Kafka lendo uma sentença do meu pai onde ele fazia referência a Josef K., protagonista do livro O processo. Depois passei a ouvir a expressão kafkiana com regular frequência até que não havia outra alternativa senão ler um de seus livros para entender melhor o que exatamente seria uma situação kafkiana. Um processo kafkiano. Um personagem kafkiano.


Isso deve ter sido por volta de 1997 no terceiro ano de faculdade. Sem vírgula mesmo depois de 1997. Nunca saberei se a expressão kafkiana a mim se repetia pelo curso de Direito, pelo seu contexto, ou porque avisava-me ela, a expressão, de que minha maturidade começava a galopar. Comprei. Li. Acabei, depois, comprando outros de uma coleção incrível da Companhia das Letras com as traduções de Modesto Carone.


Terminei de ler hoje, nesta quarta-feira das cinzas das infinitas quarentenas, há poucos minutos, "O Castelo"; livro que foi publicado postumamente e inacabado...também do Kafka. Um livro sem final aparente termina assim:


"Era a mãe de Gerstacker. Ela estendeu a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse ".

Não é bem lá um spoiler porque já na resenha do livro sabemos que K., o agrimensor, jamais chegará ao Castelo. Acomodo-me então sobre a minha insônia, passo o café e coloco o título antes do texto pela primeira vez na curta história deste blog. Coloco a playlist nova que meu irmão criou no spotify e me ponho a escrever no exato momento em que o guardinha da rua toca uma sirene no silêncio do bairro ao lado do qual sequer a autoestrada atrapalha os nossos sonos intranquilos.


Outro dia peguei o laser cuja cor não é vermelha e mirei no retrovisor da moto daqui do último andar mesmo. Ele parou nervosamente. Desceu agressivamente de suas 125 cilindradas e olhou para o prédio por alguns segundos. Logo subiu na moto e voltou para a ronda. Acionou a sirene e eu meti o laser (cuja cor não é nem vermelha nem amarela) de novo na frente do farol das suas 125 cilindradas.


Agora ele sabe que eu sei que ele passa e toca a sirene e o laser aparece. Não é pra isso a sirene?! Funciona esse esquema de segurança nos dias atuais? O cara que vai roubar já não sabe que o guardinha só passa, apita e vai embora?! A ideia não é o cara, na miúda, flagrar o assalto e chamar a polícia? Enfim. Praticamente nenhum barulho me incomoda: furadeira, faladeira, futriqueira, funkeira ou fuzarqueira.


Mas com essa sirene eu tô surtando.


Ele sempre toca aquela desgraça na hora que eu estou pegando no sono ou escrevendo. Hoje não foi diferente. Peguei o laser rapidamente - com pilha nova - e fui para a janela. Achei-o. Ele estava parado defronte ao terreno do lava-jato ainda sobre a moto. Peguei meu binóculo e acompanhei os seus movimentos visivelmente calculados. Ele desligou a moto, desceu e foi se aproximando da porta pequena. Uma senhora o atendeu. Alguns minutos depois ela entrou e ele foi andando contornando a esquina. A sua moto ficou no mesmo lugar.


Ele olhou para cima em direção à minha sacada.


Certamente estava se expondo para que eu mirasse o laser nele e ele então se certificasse de onde vinha aquele feixe luminoso da cor do time que nunca ganhou o mundial. Contornou a esquina e parou diante da casa donde logo um jovem o atendeu. Mal abriu o portão o jovem olhou na direção dos prédios mas o vigia não. O pai do garoto chegou e também olhou para cima na mesma direção que seu filho tinha olhado. Essa reação do pai era esperada por mim eis que não fazia sentido o pai aparecer se não fosse para dar a impressão de que estavam todos olhando para a minha direção.


E, com naturalidade, o vigia ficou olhando para frente enquanto pai e filho fixaram seus olhares para mim. O vigia não recebeu nenhum dinheiro ou pacote. Certamente ele não tinha elementos suficientes para chegar na portaria do prédio e apontar para tal ou qual janela e se assim o fizesse perderia a credibilidade; algo que o aterrorizava violentamente a ponto de passar noites e noites sem dormir, como se estivesse entre a vida e a morte.


Um vigia jamais poderia perder a sua credibilidade.


Passou, então, a criar essas situações para que novamente o laser cor de folha aparecesse, o que não tinha acontecido nenhuma outra vez além das duas primeiras vezes. Eu continuava na sacada mas já não notava nenhum desvio de olhar mais para cima prescrutando a minha localização. Poderia eu ter entrado no apartamento mas isso daria a impressão de que ele estava certo e essa seria uma impressão que definitivamente eu não poderia dar a ele.


Ele seguiu demonstrando absoluto desinteresse e voltou para a moto. Demorou a ligar porque um carro parou e pediu informação pra ele. Curiosamente o motorista do carro piscou duas vezes o farol e olhou na direção da minha janela. O vigia, tentando disfarçar, apontou para o sentido oposto e eu pude perceber uma encenação no sentido de desviar a minha atenção e assim lançar o laser novamente na direção dele quando então finalmente ele teria certeza de onde viria a ameaça à sua pessoa.


A preocupação dele não era propriamente com o laser ou num eventual acidente com a sua moto, mas certamente que a sua ronda fosse questionada, por qual motivo ele ficara tanto tempo parado ali sem que estivesse apitando.


Um senhor careca saiu do portão e lhe dirigiu a palavra:


-Sr. Vigia! O Conselho não gostará de saber que o Sr. está dando importância ao laser verde, porque já deveria saber o Sr. que o laser verde foi por nós contratado para testar a sua fidelidade e sua rigidez nos horários que o Sr. sabe que tem que obedecer. Um dos requisitos da contratação foi expressamente (enfatizou esta parte) seguir rigorosamente os horários de checagem...Não o farei, mas devo admitir que o Conselho já relevou a sua última falta sob a condição de que não cometesse mais nenhum deslize".


O vigia, surpreso, respondeu:


-Como chegaram a essa decisão se não fui intimado para apresentar a minha defesa prévia, que afronta! E o Sr. a esta altura levantando apenas uma de suas sobrancelhas, a direita, e puxando uma de suas meias para cima, a esquerda, com ar de arrogância, respondeu:


-O Conselho tem autonomia para puni-lo à sua revelia, de modo que não recomendo que fique conversando com os vizinhos sobre o laser verde em vez de cumprir os horários pré-estabelecidos. O Sr. bem sabe da rigidez de nossos estatutos e que os senhores membros são compreensíveis mas não podem relevar duas faltas consecutivas".


Neste momento o vigia não aguentou e olhou diretamente para a minha sacada. Esse senhor da sobrancelha direita não fazia parte do Conselho mas o ajudava gratuitamente, para obter sua respeitabilidade. Ele retornou para a sua casa levando seu celular aos ouvidos. Alguns segundos depois, chegou um carro ao lado do vigia e o capturou. Seu cassetete ficou sobre o banco traseiro das 125 cilindradas. Eu lancei o laser verde sobre a sua careca e ele riu quando notou.


Absurda a história? Kafkiana.


* por razões que eu desconheço este texto foi escrito em 03 de julho, dia em que Kafka nasceu. Seria o vigia Kafka no retorno? Não, não vou por esse caminho. É isso, só uma coincidência.


 
 
 

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