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o legado do Queiroz

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 13 de jun. de 2020
  • 4 min de leitura

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Philip Roth nos leva a Saul Below. Este me leva a um de seus livros chamado "O Legado de Humboldt". Passo desesperada e freneticamente a procurá-lo pelas minhas estantes. Não o vejo na primeira bisbilhotada. Suas folhas estavam gastas por três leituras no máximo. A capa é dura. Nela havia uma ponte e um homem. Um tom cinza e uma vista melancolicamente perigosa contrastando com as letras garrafais do título.


Abro uma primeira vez mas não o leio.


Reviro algum tempo depois outras páginas mas de novo não o leio. Ele sempre esteve entre os mais próximos. Havia muitos anos que ele estava ali comigo. Saiu de Limeira e foi para São Paulo. Esteve à beira da estante pequena do meu quarto e contribuiu exaustivamente para a minha primeira renite. Mudou-se daí para o meu escritório e disputou espaço com doutrinas e códigos de conduta.


Volta depois para o meu apartamento em São Paulo. Regressa a Limeira e se une em definitivo às ficções de Borges. Faltava-me atravessar aquela ponte num Domingo qualquer de um dos outonos tensos de minha vida lendo ao menos o primeiro capítulo; não fazê-lo era o mesmo que não ter a coragem de chegar à metade dela e conversar com aquele homem; que talvez fosse Humboldt.


Como se essa travessia fosse opcional.


Como se a Golden Gate fosse só um cartão postal e os trabalhadores do centro não precisassem dela para ganhar o seu dinheiro. Como se os suicidas vissem nela uma pintura e não um instrumento eficaz de mudarem de mundo. Suas letras e sua capa sempre estiveram lá, cá ou aqui. Eu o via. Ele me via. Nunca me aporrinhou. Silenciosamente o homem enigmático me intimidava sem desespero.


Estive em Chicago onde Saul Below viveu desde os nove anos. Lá, quando vi aqueles trens passando por gigantescas estruturas de aço, as mesmas dos filmes, lembrei-me da semelhança de ambientes aparentemente gangsterianos. Voltei ao Brasil e me certifiquei de que ele estivesse ali - sobrestado - entre todos os demais. Nossas vistas se espaçaram por um tempo. Esquecemo-nos entre os livros de história.


Como o assassino que cria coragem para matar a sua vítima eu adiava a sua leitura. E essa relação nunca foi completamente resolvida, senão outras tarefas e livros que foram nos afastando. Mas, e se eu o tivesse dado ou emprestado? Não seria essa a conduta correta? Que direito tem o senhorio sobre a coisa inerte, esquecida e subutilizada? Fosse o livro ouro estaríamos falando de enorme desigualdade social. Seria o correto ter permitido que outros o lessem, certo !? Mas não.


Eu o mantivera ali por todo o tempo.


À disposição.


À exposição dos ácaros e não de minhas retinas nada fatigadas; senão brilhantes ao reluzente do ouro. Por diversas vezes me perguntei qual teria sido o legado dele; de Humboldt. Algo histórico? Um legado para a sua família? Recuso-me até hoje a ler qualquer resenha sobre a livro. Começar a procurá-lo aterrorizou-me imediatamente. Sobretudo após a primeira olhada. Se o tivesse encontrado de imediato tudo transcorreria aflitivamente normal. Eu olharia de novo para aquela capa e talvez negligentemente voltaria a guardá-lo.


Logo o notei oculto sabe-se lá entre quem ou quais e me obriguei ao inevitável questionamento: teria ele sobrevivido às tais "limpas" ou "4s" que fiz na biblioteca? Os japoneses quando inventaram essa moderna técnica de manter consigo somente o útil deveriam ter feito ressalva específica: não se aplica à biblioteca. Puno-me por aplicar regras orientais do outro lado do mundo sem ocidentalizá-las adequadamente!


Vejo que os livros que cá estão são os sobreviventes do caos que eu mesmo criei: a tirania de decidir quem deve ou não sobreviver. Não tenho coragem de voltar a procurá-lo neste momento. Farei mais tarde. Não estou preparado para a sua eventual e final ausência. Teria eu me apropriado indevidamente dele? "É para devolver viu, Treze. Você precisa ler esse livro. Leva.", disse-me Queiroz que tinha a singular de capacidade de falar séria e sarcasticamente ao mesmo tempo. Eu ainda posso salvar-me moralmente. Seu filho é meu amigo.


Queiroz faleceu e nos deixou o legado da responsabilidade, sua sina era orientar e conversar com adolescentes sabendo que um dia virariam homens. Certa feita, tomou a porção de maconha de um de seus alunos e nos mostrou. Isso é maconha. Isso é feijão transgênico. Isso e aquilo. Sempre nos trazendo algo diferente. E perguntava. E queria saber se planejávamos o dia seguinte na noite anterior. Não hesitava em dizer pra ficar longe de encrenca. Certa vez fui acompanhar um amigo meu em coma alcoólica no Hospital. Filho, isso não é lugar para você. Chamava-nos de filho.


E falava o que pensava.


Queiroz deixou a nós, amigos de seu filho, o legado do alerta. Hoje quando me lembro das conversas que tínhamos, dos churrascos, percebo que esteve sempre lá a preocupação de tornar adolescentes em jovens e homens. "A mão que bate é a mesma que afaga", nos dizia. Chamava-me de 13 (treze), de tanto que eu perdia itens diversos, chaves, carteiras e o juízo. Sentava-se à frente de sua casa num banco que parecia o da praça e, fumando o seu cigarro ao lado de uma cervejinha, observava o vaivém adolescente das descobertas sacanas.


E, num dia desses, ele me emprestou o livro que, agora, já homem, desejo encontrar. E, resolutamente, o farei ao final deste Domingo. É chegada a hora de atravessar a ponte. Não sei se vou encontrá-lo. Achando-o de imediato começarei a ler sem descanso ou trégua. Chega sempre a hora de atravessarmos as nossas pontes adiadas e dar por conhecido o desconhecido, frustrações às expectativas, emoções reais às imaginações abstratas.


Jogar enfim sal na costela.


Não sei, ainda, qual foi o legado de Humboldt. Nunca, contudo, me olvidarei - e assim me considero privilegiado - de ter recebido o legado do Queiroz. Ouço-o até hoje.


-Treze!

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