Assim que terminei de escolher as velas coloridas no Mironga dei-me conta de que o homem que chegara esbaforido não mais estava na loja.
- Escute, aquele homem que chegou aqui dizendo que sua mulher teria lhe lançado um feitiço, o que aconteceu?
- Olhe, ele é de São Paulo, está aqui há dois dias, disse que a macumba teria saído desta cidade. Falei para ele ir até o terreiro que frequento aos sábados.
- Entendo, você pode me passar o endereço?
E assim eu saí do Mironga. Enquanto esta semana se desenrola eu decido se irei ou não até o terreiro para saber qual teria sido a catimba que a sua mulher teria lhe lançado. Eu nunca entendi bem o que significava macumba ou trabalho. Aquela é o termo pejorativo dos trabalhos que são rezas com desejo forte de que algo se realize, fé para que aconteça alguma coisa. Ao fazer esse pedido, faz-se uma oferenda (flores, comida e vela) que se coloca na encruzilhada, onde os mundos material e espiritual se encontram.
Como se deseja o bem, pode-se desejar o mal e é neste momento que a macumba ganha o seu viés pejorativo. Agora que me dei conta de quantas dessas oferendas encontrei nas encruzilhadas das estradas de terra quando andava de mountain bike. Agora entendo, depois de tantos anos a razão pela qual estavam sempre nas encruzilhadas.
O Candomblé e a Umbanda praticamente foram criados aqui. Só esta última, contudo, é comum incluir o álcool. Uma dose de pinga por exemplo. Na religião católica, é vinho que o padre bebe; o sangue de Cristo. Era devota desta última a minha amiga que esta semana perdeu a batalha para a depressão.
A gente se sente impotente.
Não tem como, pensamos que poderíamos ter feito algo, que faltaram as palavras certas no momento certo. Há senso de desperdício para o porvir. Há uma percepção de que ela só queria que aqueles dias ruins passassem, mas não que todos os demais se zerassem precocemente.
Há mesmo vida após a morte? Há mesmo retorno de nossos espíritos, de nossas almas, voltamos noutro ente ou noutro corpo para ajustar as contas terrenas? Ou tudo se acaba no pó? Ficam na terra as nossas lembranças nas dos outros. Boas. Ruins. Excepcionais. Ficam para os herdeiros os bens que eram nossos.
O livro.
A casa.
Uma ação.
Uma apólice de seguro.
Um legado, a moto, a bicicleta.
Uma missão.
Uma carta.
Um testamento.
A vida mesmo não é a existência respiratória; é uma perspectiva que temos de nossa passagem. Termino a semana sem ter ido ao terreiro atrás do homem cuja mulher lhe endereçou o trabalho; o despacho: uma oração com muita fé para que o mundo espiritual interfira na vida no mundo terreno.
Eu clamo ao mundo espiritual, para o mundo dos Deuses, ao Deus único, para todas as forças que não são terrenas que se reúnam neste sábado e revejam os critérios de existência para este ano de 2020.
Ah, aproveitando, me deixem fora dos próximos 50 anos.
Depois, tá liberado. Ai de vocês se vierem com palhaçada antes disso! Vai ter porrada quando eu subir! Já tenho uma meia dúzia de coisas entaladas na minha garganta; melhor nem provocar!
Que caralhos!
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