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dá licença...posso falar?

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 20 de dez. de 2019
  • 2 min de leitura

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Eu já sabia do caso mas não em detalhes. O rapaz, novo, está com um tumor no cérebro. Algumas semanas se passaram e o plano de saúde avalia se autoriza a cirurgia; provavelmente robótica. Eu sou um convidado ligeiramente distante no churrasco. Limito-me às intervenções necessárias. Fui convidado meio que por educação. Ouço ao lado a discussão.


Resisto a me intrometer na primeira vontade.


A conversa segue. O rapaz, outrora altivo e certeiro, fala pausado e aéreo. Sua namorada lhe oferece suco, água e um lanche de coração na baguete de alho. Com molho de queijo. Eu que já o encontrara outras vezes fico rapidamente pensativo. A sua altivez deu lugar ao distanciamento. A sua iniciativa cedeu espaço à letargia indiferente. O ritmo frenético de conquistar o mundo se transforma na obstinada vontade de conquistar o próximo passo.


Resisto à segunda intromissão na conversa que segue lateral.


Nem ocupo meu pensamento com o lugar comum; como somos frágeis. Deixo meus ouvidos falarem. A cada tempo tomado que o plano de saúde analisa a conveniência da cirurgia o jovem vai se distanciando do braseiro que é a vida.


Não resisto pela terceira vez.


-Licença, não conheço muito bem os detalhes, mas estou entendendo que há uma discussão sobre a autorização da cirurgia com o plano de saúde. Juntamente com os esforços que vocês vem fazendo, vale consultar um advogado especialista no assunto, vocês precisam ter uma idéia se a recusa ou a demora não é abusiva; se eventualmente uma medida judicial pode te ajudar.


O papo continuou e no dia seguinte lhe enviei três colegas que entendem do assunto. Ontem soube que o plano de saúde autorizou o procedimento. Não foi a possível morte provocada pelo tumor que me incomodava, mas a lenta consciência do fim. Era isso que me assustava. Nem lutar contra a natureza, nem evitar o sofrimento da vida, mas que a altivez e a obstinação jovens não fossem assim ceifadas com aviso prévio e notificação. Que se ganhasse um tempo. Que se prolongasse a vida normal e que viesse o susto de repente.


Aprendi pela minha profissão a não me abalar facilmente. Este episódio - de alguém que não me era próximo - me balançou. E foi isso. Essa indecência de se avisar que - calmamente - você está indo para outro lugar. Onde não se pode rir alto no churrasco. Onde não se pode cantar o seu refrão preferido. Onde você se sente obrigado a transformar minutos convencionais em momentos de magnitude. Um dia serei levado pela foice, pela nave ou vapor profundo. Na primeira reunião sentado ao lado dos diretores do futuro, do conselho da providência, quando enfim, falarei de igual para igual, pleitearei - com arrazoados e retóricas terrenas - que precisamos reduzir ao máximo essa história de prenunciar o fim.


O fim há de chegar repentino e tardio.


Há de se reduzir ainda mais esse tipo de ocorrência. Se tiver que chegar cedo e com aviso prévio que sejam as exceções estritamente necessárias à manutenção do Universo. Antes dessa reunião eu travarei por aqui a batalha terrena dos direitos; sempre achei que a razão fosse relativa.

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