Filhas, dei-me conta na manhã de ontem que minhas panelas de ferro vão me enterrar. Bom, vocês entenderam. Elas viverão dezenas ou centenas de anos além de mim. Elas viverão dezenas de anos, talvez centenas, além de vocês. Os homens criam as coisas e depois as coisas os enterram, às vezes as coisas até os matam. Eu sinceramente não espero que a minha panela de ferro tenha algo a ver como meu o fim. No máximo pelo bacon que fritou, pelo sal que acomodou deliciosamente por várias paneladas.
Logo logo a chapa de ferro selará o Ossobuco antes de ferver por quase uma hora na panela de pressão. Não temos o hábito de um modo geral de saber de nossos ascendentes muito além de duas gerações. Os mais curiosos avançam até a terceira geração. Como vocês sabem vocês tiveram um tataravô italiano, imigrante. Eles sabem fazer um bom Ossobuco com polenta. É a arte de tornar magistral o trivial minhas filhas.
Ossobuco nada mais é do que a canela do boi.
É músculo. Mas se transforma num dos pratos mais deliciosos que eu já comi. Saliva-me a boca quando me lembro dum que devorei nos arredores da piazza del Duomo. Será uma das primeiras coisas a se fazer quando chegarmos em Milão, se as minhas panelas de ferro me deixarem. Deixarão. Voltemos a elas; as tais.
Afora alguns Reais, lembranças triviais de pai e de algumas boas viagens, lego a vocês duas, neste ato, a panela de ferro que se ostenta na foto acima. Depois de consultar os oráculos, descobri que ela está predestinada a viver mais de 500 anos, não é muito. Algo em torno de 6 gerações, a depender da longevidade. Durante minha vida profissional presenciei muita desinteligência entre herdeiros, filhas.
Herdeiros brigam por muito. Herdeiros brigam por pouco.
Todo genitor antes de enricar deveria primeiro fazer um treinamento com seus filhos, ensiná-los a resolverem as suas desavenças por si sós. Aprenderem que o patrimônio não pode ser mais forte que o vínculo. Não é uma tarefa fácil, é quiça um dos maiores desafios. Não por acaso insisto que vocês resolvam entre si as brigas de vocês, não por acaso por dezenas de vezes, quiça centenas, há um só bem, do sabor do sorvete ao maldito slime, justamente para que vocês resolvam entre si o que comprar.
Se você aprendem entre si a dividir a TV, muito provavelmente se entenderão sobre a a panela de ferro. Quem não sabe dividir um Real não sabe dividir um milhão.
De qualquer modo, algumas orientações:
a) a panela de ferro permanecerá na família por 500 anos, após o que poderá receber qualquer destinação que as próximas gerações decidirem;
b) ela fará aniversário a cada 10 anos, a contar de hoje 27/10/2019, ocasião em que alguém a utilizará para cozinhar preferencialmente um prato italiano; tantos quantos puderem comparecer;
c) ela simboliza união e amor; é à mesa que a vida se forja verdadeiramente ainda que alguém puxe a toalha;
d) se um dia se tornar por demais pesado o fardo, lembrem-se o que seus pais e seus antepassados fizeram por vocês;
e) todas as demais questões que surgirem decidam entre vocês, entre os que ainda nem sabemos quem serão.
A missão de uma geração é zelar para que a próxima entenda o verdadeiro significado da panela, das coisas. Estas que criamos para nos ajudar a sermos felizes. Dê-se vida à esta panela, um sentido de jornda.
Não será difícil achá-la entre as minhas coisas qualquer dia.
Nela está gravada a expressão: "carpe diem".
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