-Papai, deixe que eu levo os ovos.
-Hum...melhor não. Você já tem a mochila e as duas sacolas. Terei que levar as sacolas do mercado. Depois eu volto para pegar a caixa. Ao menos os ovos voltarão inteiros.
Achei uma senhora cuja irmã veterinária os traz das frescas galinhas da Fazenda onde trabalha; em Descalvado. Os dessa caixa as tais teriam botado no dia anterior. E venho percebendo - em tese a confirmar - que os ovos frescos, além de cheirosos, tem as gemas mais resilientes. Dificilmente se estatelam quando lançadas contra a frigideira.
Os ovos voltarão.
Essa frase me acompanhou por mais alguns minutos, provavelmente pela sequência de "v". Subir, descarregar as sacolas, tomar um copo d´água e descer para pegar a caixa com trinta ovos frescos. De gemas resilientes.
Os ovos voltarão intactos.
E assim essa foi a expressão paranoica de alguns dias. E logo me emenda nas caixolas a célebre machadiana "Ao vencedor as batatas". Essa talvez seja uma das frases que mais me tomam de assalto desde a adolescência.
"Os ovos voltarão". "Ao vencedor as batatas".
Frases que nos marcam o dia. Dias. Interjeições que nos imprecam verdadeiras. Todos deveriam ter uma frase que nos anuncia. Tirada de algum livro, música ou filme. Ou até inventada. O nome sucedido da frase.
Eduardo, prazer, "É incrível que, quando tenho em mente um projeto tão arriscado, me preocupem as ninharias".
Renata, prazer, "ser ou não ser eis a questão".
Amanda, prazer, "Mamãe sempre disse que a vida é como uma caixa de chocolates. Você nunca sabe o que vai pegar".
Ernesto, prazer, "vou apertar, mas não vou acender agora...".
Provavelmente me apresentaria assim, Camacho, prazer, "ao vencedor as batatas". Muitas vezes a vida é uma guerra pela sobrevivência. Se bem que prazer, Camacho, "os ovos voltarão" não está de toda mal exceto pela duplicidade do sentido que eu não explicitarei. Este dia dos ovos estava só com uma delas. A baixola. Sempre disposta a ajudar. E me perguntou ao final do dia se eu tinha visto "os meninos que morreram na Escola". Vi filha. "Ao vencedor as batatas". Funciona assim. Você acorda cedo e toma café da manhã com seus filhos. Se trocam e separam o material. Não esqueceram de nada? Pegaram blusa? Peguem o lanche!
Depois toca o telefone da mãe ou do pai do amigo do seu filho pedindo para ir para a Escola porque teve um tiroteio. Um dia qualquer em que a tragédia se apresenta bruscamente.
Prazer, Raul, "meu filho é uma vítima do massacre de Suzano".
E nem era este o curso da crônica. E nem era assim o curso da vida. Pela primeira vez substituo uma foto por uma tarjeta preta. Não que a dor, o ódio ou o fim da vida me passassem antes ao largo. Pela primeira vez minha filha espontaneamente me pergunta sobre um massacre de crianças.
Até quando a criminalidades nos derrotará?
"Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
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