Vila Isabel. Rio de Janeiro.
Encontro meus tios como sempre no aconchego.
No letreiro aparece Bar do Aconchego. Na prática é o bar da Maria.
É um botequim carioca. Simples. Despojado. Espetinho na calçada. É onde eles tomam a cervejinha deles. Chega um, conversa. Chega outro, cumprimenta. Meus tios me apresentam como o sobrinho Paulista. Toda vez que chego tem dois cones de amendoim sobre a mesa. Já faz mais de ano que cumpro esse ritual quando vou ao Rio.
Convivendo com eles, convivo com meu pai.
Um é artista, Paulo Rogério. Essa tela aí de cima é dele. Outro professor de química já aposentado. Se bem que agora resolveu empreender em Juiz de Fora. Batemos e botamos o papo em dia. Eu vou de Heineken. O Rogério de Itaipava e o Zé Arthur do que tiver rolando na hora. Da última vez, encostou o Léo, editor e amigo do Aconchego. E me perguntou o que estava lendo...meus tios não se demoraram...processo judicial! E logo falaram que eu tinha um blog de crônicas. Depois de alguma insistência nos entregou um livro para leitura e opinião. Queria saber a opinião do meu tio Rogério na verdade, artista. Ele logo se recusou e jogou a bola, o livro, no meu colo. Deixe que eu leio e aproveito que estou sem assunto para a próxima crônica.
Como quem se despede de uma amada, como quem entrega sofrendo, passou o livro ao meu tio. Que me entregou. E o Léo explicou. Só tenho este exemplar e ainda com dedicatória! Quem tem livro autografado e com dedicatória sabe da responsabilidade envolvida. E a dedicatória é boa demais: "Léo, nomeio você o guardião do último exemplar da pequena tiragem de 63 livros. Creio que ele estará em boas mãos. Eridan Passos, dezembro de 2018". Eridan analisou 902 cartas escritas por Van Gogh e, a partir delas, constrói uma narrativa sob o prisma do amor, do amar e ser amado. Eu que tenho o hábito de folhear o livro antes de entrar de cabeça, vou logo para o capítulo 07, e último, que trata de sua morte. Suicídio, acidente ou assassinato, nos conta que Van Gogh se deixou morrer.
Morreu fugindo da loucura, pobre e sem reconhecimento pelos seus trabalhos. Sim, e sem uma orelha. O livro não é só a reconstrução de temas do artista através das cartas; sua única fonte de pesquisa. Há um contexto em torno delas, que permite aos leigos se situar na obra e vida dele juntamente com as suas palavras. Pois é, do Aconchego, onde encontro com meus tios, minha família, onde falo de meu pai, de minhas filhas, se vive um dos maiores desejos não realizados de Vincent, de constituir uma família, de sangue, de artistas, e assim admiro perplexamente essa capacidade dos artistas de se entregarem plenamente às suas vocações.
Caro Vincent, tá aí?
Não havia, nunca houve, nenhuma garantia de que a entrega a outro ofício que não a arte, ou ainda, ao filho que você não teve, teria lhe dado uma vida mais feliz. Só acho muita sacanagem esse negócio de fazer sucesso depois da morte. Se bem que...não sabemos exatamente se não tem um banco celestial e qual seria a moeda corrente por lá.
Léo, já te devolvo o livro, mas só se for no Aconchego da Maria.
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