Como?
Como eu poderia saber quando meu pai morreria, minhas filhas nasceriam e que a receita de pão falharia?
Como?
Que a minha vista seria de prédios e de montanhas, que o Morro Azul da adolescência sempre foi verde. Que eu jamais veria minha coleção de Comandos em Ação novamente e que a bola da infância, verde, branca e furada, sumiria depois de tanto rolar.
Como?
Que depois de jogar futebol, de quadra, de campo, de areia, eu jamais me machucaria e nunca seria profissional. Como eu poderia prever a cor preta da pia da cozinha e que o desemprego um dia me assolaria. Que inúmeras tralhas juntadas com apego e afinco seriam deixadas para trás, na casa que ficou para trás.
Que eu nasceria numa cidade grande, mudar-me-ia para uma cidade com nome de Presidente, de Santo e de uma Fruta. Que num Domingo de outubro eu acordaria ouvindo Jazz. Que num Domingo de novembro eu acordaria ouvindo Raul. Que sentiria a chuva vindo de longe.
Que eu descobriria o fim das coisas que quebram, do copo, da amizade e da confiança. Que eu consumiria tanto azeite e tanto queijo ralado. Que eu concluiria um meio Ironman. Que jamais veria Ironman no cinema. Nem em casa. Que um dia seria Italiano e minhas filhas italianinhas. Que eu saberia fazer sardela e alichela com a receita original da minha avó. Que ainda veria meus amigos da Faculdade.
Que eu voltaria a sonhar quando já azedo amaldiçoei tantos e quase todos. Que um dia, depois de tantos avisos, eu escreveria com alguma seriedade. Que a adrenalina de sustentar oralmente as razões de um recurso é inebriante.
Como?
Como eu poderia saber que um dia encontraria na indisciplina um aliado da criatividade. Da felicidade. Como eu poderia saber? Como nós poderíamos saber? Que eu faria pratos de madeira e presunto caseiro. Que minhas filhas fariam circo. Que eu voltaria a andar de Mountain Bike.
Que meus livros seriam compartilhados e que novas amizades poderiam ser feitas, quando os conceitos já se tornaram tão rígidos pela idade, pelos tombos e recomeços.
Como?
Que eu conheceria o Uruguai e voltaria a estudar a Guerra Cisplatina. Que eu voltaria a gostar do Brasil, que eu voltaria a ler História do Brasil. Que a tristeza faria parte da vida. Que a alegria deveria se ocupar de mim mais que a tristeza.
Que há coisas sérias. Coisas pequenas.
E coisas irrelevantes, embora sérias e grandes.
Que há coisas relevantes embora pequeninas como um gafanhoto. Os detalhes. Que um dia eu descobriria a verdade nos mentirosos não para imprecar nem para julgar; mas para conhecer a natureza humana. Que eu enfrentaria dois vazamentos de água na mesma semana.
Como eu poderia saber? Como nós poderíamos saber?
Que um dia uma viagem de ponte aérea me inspiraria a escrever. E assim escreveria pelos sábados chuvosos e entendiantes. Também os escaldantes. Como? Quem?
Quem disse que eu precisaria saber tanto assim para viver?
Comentários