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  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 4 de ago. de 2018
  • 3 min de leitura

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Há um tipo especial de bom dia que me irrita. Aquele que não te espera responder. Cedo, dia recém raiado, você acordando sobre a esteira e um livro. Entra a cinquentona, bom dia em alto e em brado bom som. E antes de entender de onde vem, sai outro, mais alto, mais agudo, mais intrinsecamente seguro que o anterior. Intrinsecamente aí é inapropriado. Foi.


Quem acorda assim, no gás, acha que tá todo mundo na mesma.

Eu estava decidindo se lia, corria ou acordava. Não só eu não, tem uma galera que precisa de umas horinhas pra não matar quem lhe grita o bom dia do animadão, da animadona.


Dias atrás a Marina, a esposa do Felipe, que tomou o leite da Elis Regina, me confessou que nos primeiros momentos do dia a única resposta possível ao bom dia é: Pra quem? Reserve esse episódio sobre a pia da cozinha enquanto você prepara o café neste sábado maravilhoso que o Universo acordou junto contigo. Agradeça ao cosmos por favor.


Recebo as tais e quais listas de livros por email, dessas que a gente vai se cadastrando sem critério. Nem sempre abro; ontem xeretei a da NPR e parei na chamada de um livro .....aprendi a viver sem esperança. É um veneno. Na hora parei para ler a história do jornalista Michael Scott Moore que foi para a Somália escrever sobre a pirataria e foi sequestrado. O livro começa meio devagar contando sobre como ele foi parar na Somália e eu sem paciência logo querendo saber como ele foi capturado, se ele foi torturado, se pagou resgate. Confesso que meu lado maldoso logo pensou, não é possível, ele pagou aos piratas da Somália para conseguir a história.


Logo desisto desta versão esquizofrênica.


Logo o livro começa a ganhar emoção numa narrativa em que suas lembranças, de seu pai, de seu divórcio e sua ida a Berlim se misturam com trechos do sequestro. Em Anthropoid, conto meu, a personagem principal Hana vive no máximo um dia além do hoje. O amanhã. Refugiada da guerra, da cidade de Lídice, Checoslováquia, sobrevivente graças à sua mãe que a lança para dentro de um bar quando a cidade estava sendo evacuada para ser queimada, ela viveu como Michael Moore, um dia, só esse dia.


Ou seja, sem esperança.


Sem o afrodisíaco amanhã, o tempo que nos aparece instintiva e repetidamente todos os dias até o último deles. Essa percepção dele, a esperança é um veneno, chamou a minha atenção para ler seu livro. Comprei. Era ele que estava lendo quando a cinquentona chegou na academia. A costa da Somália, seus piratas, são conhecidos de quem navega. Os Schurmann, num de seus episódios, conta que próximos a essa região, já ancorado para a noite, encostou relativamente perto deles um navio do tipo estranho. Perguntou-se o porque de parar perto dele dado o tamanho do Oceano. Seria o mesmo que eu perguntar por qual raios eu tenho que ouvir um bom dia agonizante considerando o tamanho de São Paulo, o Estado. Sem titubear, sem acender as luzes, eles zarpam dali.


São meus heróis os Schurmann. Coragem de viver uma vida diferente é para poucos. Michael Moore escreveu o livro que eu sempre tive vontade de escrever. É por demais sedutora a ideia de entregar a vida a um projeto. 977 dias refém dos piratas. Qual foi o dia em que ele percebeu que a esperança paradoxalmente o matava; e não os piratas? Quantos dias foram necessários para que ele perdesse a esperança? A vida é um jogo de perspectivas sobre o porvir.


Seu dia pode ser o melhor ou o pior, tudo depende tão somente da expectativa que você tem sobre o seu amanhã. De quem você encontra na academia de manhã. De todas as incompreensões humanas a incapacidade de prever o futuro é a mais fascinante.


O futuro que nos alimenta é o mesmo que nos definha até, secos, virarmos folhas para chá. Verde. É afinal uma perspectiva sobre a vida. A ausência de esperança é a consciência plena de uma realidade instalada, subjacente um trauma que a justifique no mais das vezes, a queima de uma cidade, sua condição de refém ou a morte de um filho na inversão da natural ordem do caos.


É a paz com o estado das coisas, tal como posto.


A ausência de esperança pressupõe a desistência, a entrega sem luta, a aceitação do destino? Outro dia penso sobre isso. Já gastei tudo que tinha pra hoje. Imagine 977 dias acordando com alguém como a tal cinquentona?


Essas ideias piratas que aparecem pela manhã. Cuidado.

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