A minha obsessão veio comigo do Brasil.
Cheguei na Itália ciente de que a tentação seria conhecer inúmeras cidades, monumentos, pastas e vinhos; exasperadamente. Afinal, o que é conhecer uma cidade, um país? Não vou encarar essa aqui e agora. Optei por viajar somente nos finais de semana e feriados, levando uma vida próxima de um cidadão italiano durante a semana, entre expressos e Spritz.
Participei de um concurso local de fotografia, das comemorações da Liberazione e da largada das 500 milhas de Brescia. Fui ao teatro. Vou ao cinema com frequência. Li jornal impresso e fui à feira comprar frango e joelho de porco assados. Queijo, pão e manteiga. Fui em restaurante enjoado e em, digamos, o que seria equivalente ao nosso butequim. O mercado está preparado para produtos em porções menores; individualmente consideradas.
Andei de bicicleta como meio de locomoção. A minha obsessão pelo regionalismo que vinha desvendando no Brasil cá chegou comigo. Na mala. Com a sofreguidão de não falar em italiano, recusando-se a falar em inglês ou espanhol, exceto quando estritamente necessário, encontrava os vestígios históricos nas ruelas, nos castelos e na igreja. Não os sentia ainda entre as pessoas. Missão impossível sentir a história de um país pela sua população....sendo um estrangeiro de poucas semanas.....? Talvez.
A única pequena hesitação na escolha da minha carreira foi para jornalismo. Decidi direito pelo Direito. Hoje sou um advogado que brinca de jornalista. De vasculhar locais e sentimentos. Pegadas e rastros que ainda não são notícias. De repente eu sou abençoado. Quem procura acha. Que ditado verdadeiro! Vai atrás e tome teus tombos que uma hora você tem que achar, tem que se dar bem.
Não não nascemos para nos fuder a vida inteira.
O cara pra se ferrar a vida inteira tem que fazer muita merda; penso eu. Agora que saiu um palavrão estou mais calmo, parece mesmo que fui em quem escreveu. Estava muito formal; já há muito abandonei o formalismo como forma de expressão. Nas andanças vi um cartaz de filme chamado "Il muro". Free. Recebi a benção no Éden. No Novo Éden, que é o nome do cinema, do teatro. Uma terça-feira e a plateia cheia. Pessoas sentando nas escadas laterais.
Um rapaz de preto começa a falar o que julguei ser uma introdução ao filme. Achei do caralho, que pessoal evoluído, que idéia! O cara vai fazer uma introdução histórica ao filme. Conta os bastidores do fim da guerra e o início da guerra fria. Envolvente, parece ator. Fala muito. Depois entra uma moça e percebo que não vai ter filme. O espetáculo são dois jovens que se alternam contando histórias do Muro do Berlim.
E vai nos envolvendo....o jovem que tomba morto no muro para encontrar a sua namorada, o alemão que atravessa o muro com um ônibus blindado e a jovem que fotografou militares espancando e proibindo as pessoas que ouviam do oriente o show do Pink Floyd. À minha esquerda uma senhora começa a chorar e a adivinhar parte das histórias....sem foto ou imagem do muro formos aos poucos sendo tragados pelas histórias.
Rostos e trechos do muro vão se formando na minha cabeça. Memórias freaudianas me assaltam vindas dos meus treze anos quando vi a cena no telejornal. De repente me vejo torcendo para que o motorista do ônibus, Joseph acho, consiga atravessar o muro. A garota que fotografou os militares é presa e torturada. Eu me pergunto se teria eu resistido a tanto. A senhora ao meu lado começa a chorar e vejo o muro, as pessoas tentando atravessar, o som de tiro, o sangue, palavras em alemão e....de repente...senti-me parte da história....dei-me conta de que é fazer parte de um cenário de guerra.
Uma pedra caiu sobre a minha perna.
Teria a senhora ao meu lado perdido seu marido na guerra?
Lágrimas e sangue me transportaram...
Aos poucos O Muro vai tombando. Eles não apresentaram a peça tão somente. Marco Cortesi e Mara Moschini entrevistaram 43 pessoas para formar o espetáculo e colheram as histórias diretamente dos envolvidos...Contam-nos que a entrevista de número 43 de forma comovente. Encerram o espetáculo falando dos muros, físicos e conceituais...e do maior de todos eles...o muro chamado Medo.
Que espetáculo maravilhoso! Que fantástico! Que foda! Fui falar com Mara. Começo em italiano e sigo em inglês. Pego seu contato, o site, e lhe aviso que logo escreverei sobre a peça. Me senti jornalista.
E, assim, extasiado e com memórias de guerra termino a noite na Elda Pirleria, meio que sem pensar, no caminho. Como se morasse por ali, do Éden a Elda, revelou-se um dos melhores caminhos pelas ruas de San Faustino, em Brescia. Experimento, ali, o vinho de que mais gostei até o momento, chamado Notte a San Martino, da Família Olivini, do Lago de Garda. Merlot, 2014.
Andanças pela Lombardia entre muros antigos...
* Material publicitário do espetáculo. Aqui!
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