top of page

o copo cheio

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 3 de mar. de 2018
  • 4 min de leitura

ree


Lembrei-me há pouco da primeira vez que esperei o copo ser enchido de água até a boca do copo. E, assim, quando ele quase transbordou calmamente fechei a torneira do filtro. Ali vi que meus níveis de ansiedade estavam sob controle. Não pense que ela é de toda ruim. Pessoas que querem resolver os problemas logo, ver as coisas acontecendo geralmente são acometidas de extrema ansiedade. Olham a conclusão, o fim, o extinto, o arquivado. O posto e acabado. Miram resultados. E, assim, ela nos impulsiona.


O problema surge quando ela nos atropela.


A ansiedade é péssima, por exemplo, na negociação que se sabe demorada. Se os problemas estão caminhando para a solução, a mente é brilhante em criar situações que possam piorar o fim. A razão ganha contexto importante, eis que é preciso criticar o sentimento, coluna dorsal da Inteligência Emocional do Goleman.


Ansiar pelo término prevendo os problemas que possam acontecer é meio caminho para o pânico, que nada mais é do que prever resultados desproporcionais para situações normais.


É prudente que se consulte um médico.


Tudo isso porque me peguei esperando um copo ser enchido até a boca antes de beber. O ansioso não espera o copo ser enchido. Ele enche metade e bebe a metade. Enche outra metade e bebe mais uma metade. Vive às metades. Não tomem essas minhas observações acima a sério. Eu não sou médico e há um risco enorme em você tomar essas linhas para qualquer outra função que não seja estritamente passar o teu tempo.


Os engraçadinhos de sempre dirão que me falta assunto. Outros acharão totalmente idiota escrever algo a partir de um copo sendo enchido d´ água.


É, fodam-se os engraçadinhos. Coloquem no copo o que bem quiserem, onde se escreve água leiam vodka, suco, cerveja, diabo verde, o que raios for.


Todo e qualquer instante pode ser objeto de uma crônica. De um conto. De um devaneio.


Uma saia faz uma poesia. Um amor perdido também. Um óbito fez "crime e castigo". O álcool fez Bukowski. E eu faço esta crônica de um copo d´água. Cada um se vira com o que tem à mão.


Há sempre um olhar metafísico nas coisas, convenhamos.


E, assim, fica difícil azedar com a realidade posta, das coisas como são, das pessoas que fantasiam a alma além do Carnaval. Que, sérias, se revestem leves. Que, leves, se revestem graves. Que, pobres, se revestem ricas. Que, vazias, se revestem plenas.


Estamos nos tornando especialistas nessa vivência de aparência, do eu sou foda?


Lógico que há recompensas, os sociopatas que o digam. Com estes só temos que cuidar para que não nos furte a energia. Eu ameaço de morte quem tenta me subtrair energia. Protejo-me como um escudo viking em combate. Anteponho a cruz aos vampiros que saem à noite para nos tomar sangue; vitalidade. Eis que a existência não me amarga demasiadamente; esse olhar metafísico me devolve o meu bom humor. Eu parei de perder piada e já minhas filhas andam dizendo que nunca lhes respondo de forma séria.


- Pai onde está meu celular?

- Vi um duende com ele na sacada. Ou, filha, não precisa tirar o prato da mesa porque o nosso drone-mordomo o fará.

- Pai, não tem água gelada.

- Filha, noite de lua cheia não pode tomar água gelada.


E, assim, percebi uma vida menos áspera. Quando enfim me dei conta que todo o instante de vida - todos sem exceção - podem ser objeto de um texto qualquer. As ideais pululam. É possível iniciar um romance em que o advogado, atualizando as suas planilhas, foi golpeado na cabeça.


Dei-me conta então que a literatura é a arte de viver plenamente a vida posta, a vida azeda, lidar com pessoas insuportáveis e maravilhosas. A cada instante de...miséria, luxúria, asco; o crime ou o nascimento. De maldade, perversidade. O momento dos imprestáveis e das escórias, dos santos e abençoados, há sempre uma versão literária que lhe corresponda. O copo vai se enchendo. E, se enquanto divago, a água transborda ou o copo cai no chão talhando-me o dedão, há, de qualquer modo, um instante-criação.


Com flauta e letras podemos transformar a vida amarga em vida boa.


Com essa visão metafísica da vida, literária, e me deixe que depois eu me entendo com Nietzsche, podemos dar aos relacionamentos amorosos uma outra dimensão. A da experiência, de extrair o que se teve de bom, olhar a troca, de não antever compromissos ou exigir de seu amor algo que ele nunca nunca será.


Os engraçadinhos de plantão, sempre os há, dirão então que vivo no mundo de fantasias, da ficção, e não da realidade.


Talvez; possível que eu seja um personagem de um livreto terreno; um romance esquecido ou uma poesia inacabada. Que você seja uma marionete embriagada e ainda não tenha se dado conta disso. É preciso questionar a realidade para não se cansar de suas peripécias, há tantas e infinitas maneiras de se ver a própria vida que se não a captarmos alguém lhe entregará uma versão pronta de você mesmo; uma aí qualquer; até paga.


Os momentos felizes exigem criatividade. Há tantas armadilhas na rotina que ela te oferece a disciplina como recompensa. Há tantas recompensas numa vida indisciplinada que ela te oferece o caos como companheiro.


O tédio é a arte de enxergar as coisas como elas são.


E, pronto, estou eu, agora, fadado e amaldiçoado a lembrar dessa crônica enquanto e toda vez que encho meu copo de água no filtro. Um dia meu filtro de barro morrerá; embora tenha ontem me confessado, no café das 19, que seu sonho era ser pirâmide.


Por que?


"Todos temem o tempo, mas o tempo teme as pirâmides.", dizem em Cairo.


Dei risada e bebi minha água. Antes que eu me esqueça, apostamos 100 mil dólares quem morrerá primeiro, eu ou ele. Viver dá sede.

Comentários


@2025 - Todos os Direitos Reservados - ANTES QUE EU ME ESQUEÇA - CRÔNICAS E ESCRITAS - From WWEBDigital

bottom of page