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por quem os sinos dobram

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 24 de fev. de 2018
  • 4 min de leitura
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Toca Raul antes de começar.


Ou não.


Dias desses num estalo me deu vontade de ouvir Raulzito; e lá se foi "ródando" a playlist. Logo de primeira veio Rockixe. Depois Por Quem os Sinos Dobram. Cantei em voz alta na academia; num típico acesso de egoísmo e inconveniência, esperando que reclamassem para eu parar. Ninguém reclamou. E uma delas foi Eu Também Vou Reclamar. Letra de música que se aprende na adolescência não se esquece nunca mais. Não só eu ouvia, a galera toda. No carro, no churras, nas nuvens. Não morava em Limeira ainda quando ele foi fazer o show no Nosso Clube; cantou algumas músicas com Marcelo Nova, Panela do Diabo, e tombou...me disseram.


Devo ser membro ainda do fã clube. Quando me filiei recebi a carteirinha e uma chave de metal num cordão preto que nada mais era do que símbolo da Sociedade Alternativa. Com essa minha mania de me enfiar de cabeça em assuntos que me interessam, logo comprei a sua biografia. E duas. E CDs. E mais CDs. Logo tomei pé de sua jornada, desde Raulzito e os Panteras que arrepiavam nos bailes de Salvador, suas tardes ouvindo música na casa de seu amigo cujo pai era embaixador e a ida para o Rio, para São Paulo, suas músicas censuradas como Mamãe Eu Não Queria e Gospel, que basicamente é uma música filosófica, de perguntas como


"Por que eu passo a vida inteira com medo de morrer; por que os sonhos foram feitos pra gente não viver".


Se minha me memória não me trai Metrô Linha 743, escancaradamente crítica ao então regime, passou batido. Seu exílio nos Estados Unidos que lhe permitiu depois gravar várias músicas em inglês, como as excepcionais que constam em Raul Vivo, um álbum de capa escura, preto-azul e branco, é um dos melhores na minha opinião. E uma em inglês dele, das que eu mais gosto, chamada How Could I know. Dos amigos ganhava camisetas, quadros e cds do Raul. Cheguei a comprar num sebo Bhagavad-gita, o livro que narra o diálogo entre o mestre espiritual Krishna e o guerreiro Arjuna.


Apesar do livro a minha espiritualidade não se elevou nessa época. Depois, fui assistir no cinema o Início, o Fim e o Meio, de Walter Carvalho. Genial. Eu fui um adolescente folgado. Eu fui uma criança folgada. E sempre gostei de fazer comentários em voz alta, diretamente, para o professor, hábito terrível que tenho até hoje. E, às vezes, piadas. Não perdi esse hábito nem na pós-graduação. Aquela formal, na PUC.


Tranquiliza-me essa sensação de imperfeição. Desconfio em tese a confirmar que quem escapa essas falas não sou eu; mas outro eu que se manifesta sem me pedir licença somente em aulas e para fazer comentários e piadas.


Um dia quem sabe numa sessão de hipnose eu bote ambos para conversar. Num desses comentários altos numa aula do Valdir, de História, no Colégio Einstein, o professor, então vem dar aula. Levantei e fui em direção ao quadro negro, mas disse, agora vamos falar de Raul Seixas e a sociedade alternativa. Logo o professor entrou no embalo e passou a dar aula junto comigo, com maiores detalhes daquilo que seria a Sociedade Alternativa idealizada por Raul. Raul Seixas aborda temas universais e outros constantes na adolescência, como a relação de pai e filho, em Sapato 36, os desafios constantes em Tente Outra Vez, a espiritualização em Gita, as drogas em Ide a Mim Dadá e Não Quero Mais Andar na Contramão, a morte em Um Canto Para a Minha Morte, a amizade em Meu Amigo Pedro, o jogo de cintura em Como vovó já dizia, a política e o Brasil em Aluga-se e Metro Linha 743, o caipira em Capim Guiné, lesbianismo em Rock das Aranhas, a liberdade de expressão e a vontade de gritar ao mundo tão própria dos adolescentes em Loteria da Babilônia, a matemática em Os Números. Peraí, matemática em os números (?!?!?!).


Também não achei que tinha nada a ver, até que o Robertão, então diretor da Einstein, cuja visão empreendedora era admirável e inversamente proporcional à sua habilidade pedagógica, chamou um camarada franzino, muito franzino, cearense, para dar aula de matemática.


Ele amava a matemática e Raul Seixas. Ele era baiano.


Cantava na sala de aula. Sim, o chamávamos de bonê.


E ele cantava os números de Raulzito nos corredores da escola. Ele tinha orgasmos matemáticos ao passar a lição. Ele deveria resolver uma equação de segundo grau durante a cópula noturna e assim o auge orgástico era duplo, melhor, triplo, dele, de sua companheira, e da equação de segundo grau. Nunca me disse isso, mas não poderia ser diferente. Acho até que as melhores deveriam ser aquelas em que ela, e não ele, montava a equação. E, de repente, ele, vai bem, vai bem, raiz quadrada; agora racionaliza, rápido! Vai mor, solta o cateto, eu calculo a hipotenusa, e depois bora pra Pitágoras. Eu brinco, mas a paixão contamina. A verdadeira paixão dos homens pelas suas atividades. Pela vida que o apaixonado leva, pelo seu propósito. Pelo tesão de fazer as coisas com tesão. Não sei que fim deu Bonê. Ele e Raul viveram suas paixões. Não lembrei dele, do Raul, do nada, mas sim pela letra de Por Quem os Sinos Dobram, depois de ouvir um relato de um cliente...


"É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro, evita um aperto de mão dum possível aliado".


Há pessoas que vêm ao mundo para chacoalhar; questionar e chocar. Raul foi portador de uma rebeldia, através do Rock ele gritou ao mundo as suas convicções, o seu estilo; e atiçou a sua geração de forma irreverente. Causava, numa época que precisava de barulho, de expressão, de liberdade, de respeito à individualidade, aos direitos fundamentais do ser humano.


De repente Raulzito sumiu da minha vida; deu lugar à gravata.


E hoje, de repente, eu sumo com a gravata e dou lugar a Raulzito.


E, como um amigo que não vejo sempre, eu o visito sem formalidades; canto, rio e danço. Depois que eu me jogar cinzas lançadas ao vento cada partícula transformar-se-á nas músicas ouvidas e nas paixões aqui vividas.

E, como tempestade, tornarei filtrado à Terra.


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