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bem que eu te vi Cabral.

  • Foto do escritor: Carlos Camacho
    Carlos Camacho
  • 17 de fev. de 2018
  • 5 min de leitura

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Sento-me na mesma mesa onde um ano antes terminei de escrever meu livro sobre Shopping Center. Desta vez minhas filhas brincam ao lado e o texto é literário; solto, não técnico. O tempo também é outro, todos os ventos na verdade se juntaram para me tornar outro; outra pessoa, noutro tempo.


Tempos, templos, temperos e tempestades que visitamos na existência.


Estamos em temporada de férias; o clima é úmido e o vento disfarça a leseira baiana; a brisa brisando em Arraial d´ Ajuda. Repare que nome mais nobre poderia ter um arraial, da ajuda. Onde todos se ajudam ou que ajuda os passantes entre as vilas; os viajantes. Que, de qualquer modo, soma. Ou, talvez, porque Jesus Cristo vestido de mendigo avaliando a bondade da vila foi ajudado; não o largaram na rua, foi acolhido. Deram-lhe comida e abrigo. Não lhe cobraram nada. No dia seguinte ofereceram-lhe um emprego justo. Depois de um tempo desapareceu e, em alguns meses, o Arraial era conhecido como d´ Ajuda.



Eu vi Jesus Cristo em Caraíva, deixo de mostrar a sua foto porque quando ele passou andando na areia estava sem celular e a minha máquina não veio para esta viagem; num reparo técnico. Há dois tipos de viagem, com e sem máquina fotográfica. Esta última vem sendo a que transforma a viagem numa arte, numa exposição. Antes que os engraçadinhos de plantão digam que vi Jesus Cristo porque respirei a brisa temperada pelas ervas de Caraíva, minhas filhas também viram.


Antes que os mesmos engraçadinhos digam que igualmente elas respiraram a tal brisa, todos que estavam na areia viram Jesus passar bem defronte. Ele, Jesus, andava sobre as águas do rio e depois de passar pelas pedras mergulhou no mar. Pareceu-me que veio fazer a vistoria técnica da criação, como os homens estão cuidando deste pequeno paraíso. Recuso-me a jogar no Google para saber a origem do nome Arraial, de modo que deixo para minha imaginação a explicação do nome. Ou amanhã pergunto por aí.



As praias e brisas sem fim do sul da Bahia; a vegetação costeira de coqueiros e palmeiras me avisam sobre o tempo; na ponta da praia Coroa Vermelha avisto a baía enorme de Cabrália e logo me dou conta desse convite natural para suas areias; os portugueses foram abraçados pela Bahia. E fiquei bem ali uns bons minutos imaginando aquelas caravelas paradas e os índios entocados acompanhando o desembarque. Converso depois com Joel, índio pataxó cujo nome de tribo é Bem-te-vi. Esse aí da foto acima.


Eu fui para praia e ele lá, sentado, conversando com um e com outro. Ria e fazia piada. Volto para tomar mais água de coco; ele lá parado. Papo vai, papo vem, a família dele controla três barracas de praia, por 120 mil à vista você arrenda por um ano uma barraca daquela ali. Mas e o dinheiro vai pra reserva, vai pra tribo, não...o dinheiro é meu, cada família tem um pedaço aqui. Ali é de fulano, dali é de Sicrano. Todos pataxós. Tenho 7 filhos e já dei um negócio para cada um e aí não me meto mais. Não fica dando palpite no negócio? Não, se quiser arrendar arrenda, se quiser trabalhar trabalha. O ponto do pastel é da minha filha. Aquela loja de artesanato ali é do meu filho. E tem alguém que mora em tribo? Hoje não mais.


Filha depois que casa é problema do marido. Gente boa o Bem-te-vi. Peço para abrir o coco e uma tapioca de bacalhau. O peixe fresco chega do mar fisgado pelo arpão. Eu sigo meu rumo de volta, passo pelo Centro Comercial dos Pataxós, onde o artesanato é efetivamente local. Cada família faz um artesanato específico e entre eles compõe os produtos de uma tenda típica. De roupas de índias, colheres, enfeites, lanças e zarabatanas. Não resisti às xícaras de coco e às lanças de palmeira.


E vocês tem apoio do Governo, eles incomodam demais vocês?


Gargalhada. Nós é que incomodamos. Confesso que a sensação é estranha. É diferente. Momentos antes eu os vi chegando pela baía abrigada. Momentos antes eu vi os índios saindo aos poucos do meio do mato e recebendo os portugueses com arcos e flechas ao chão. Eles nem sonhariam que seriam dizimados. Os sobreviventes aprenderam: é preciso dinheiro. É preciso entrar no esquema. E hoje eles jogam o jogo; bem jogado. Ali, ao menos naquele pedaço de areia, um nada perto do que tinham antes, eles é quem mandam. Dominam o comércio e os imóveis por ali; os vendedores vestidos de índio vendem mais que os normais. Adaptaram-se e hoje são raridade. Tanto que justificou a minha com foto com ele.


Logo nas primeiras aulas de Direito Civil estudamos sobre as pessoas, os sujeitos de direito, isto é, quem e como pode responder pelos seus atos perante a sociedade. Os silvícolas são os índios não civilizados e eram pelo Código Civil de 1916 relativamente incapazes para certos atos; enquanto se mantivessem índios. Não civilizados. Hoje são regulados por lei especial. Ser civilizado nada mais é do que jogar pelas regras sociais de determinado grupo, com consciência delas. Joel joga bem. Sim, vai em Cartório antes e deixa tudo documentado, certinho. Recebe antes, homem branco não é confiável.


Confiamos uma vez e tentaram nos escravizar. Ele não disse isso. Eu quem falou. Duas cruzes onde foi rezada a primeira missa. Uma a original, a outra em homenagem aos 500 anos de descoberta. As cruzes estão largadas no meio do pátio central. Nenhum sinal de Estado ali. Tudo improvisado, construção abandonada. Largado como o Brasil, é a primeira impressão que tenho. A criatividade do negro que vende coco e do carioca que é o garçom do pastel me chamam a atenção. Todos eles trabalham para o Joel Pataxó. Dentro de cinco metros quadrados, o índio, o negro e o europeu. A formação do povo brasileiro em cinco metros quadrados, mudaram-se as proporções tão somente.


Logo vejo que a maior desproporção é a terra que tinham para a de hoje. 500 metros quadrados que Joel explora economicamente; 518 anos depois. Vêm-me divagações, se ao final foram indenizados pela expropriação histórica e, em rigor, um processo histórico que poderia se dar de outro jeito? Logo minha filha pede milho verde e me chama de volta. Viajar pelo Brasil é a demonstração de amor que o brasileiro pode ter. Viajar pelo Brasil é lembrar de parte de sua história.


Brasileiro me parece viaja pouco pelo seu Brasil e continuo a desconfiar em tese a confirmar que o brasileiro não se achou ainda; não se ama.


Sul da Bahia está dominado pelos Pataxós e pelos hermanos argentinos, logo eu deixo de lado minhas playlists para ouvir cumbia. Cumbia villera, como Damas Gratis e Pibes Chorros e a cumbia Santafecina, mais família, mais lenta, cujo nome se deve a Santa Fé, embora toque em toda a Argentina. A maioria vem de Buenos Aires e são muitos. Gosto dos latinos.


O Brasil segue me intrigando; instiga-me como um crime a ser descoberto. Uma investigação ainda em aberto. Antes que eu me esqueça; eu e minhas filhas viajaremos o Brasil dos brasileiros antes do fim.


Qual fim? Ora bolas!

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