Não se pesquisa sobre o assunto da crônica.
Não se posta diante da tela até que venha a idéia principal.
Ela nasce. Ela vem.
Desperta como um fantasma no meio da noite, uma brisa de vento inesperada. Uma conversa, uma foto; um agridoce qualquer. A única coisa que faço é identificar que ali tem uma crônica. Várias ideias vêm e vão até que como ouro ao final da peneirada temos uma pedra bruta; a virar aliança ou crucifixo. Ela parte do cotidiano. Tem traços ligeiramente nostálgicos.
A crônica conecta tempos da alma, é uma porta que se abre para todos. Pode até ser um cheiro. Uma erva. Um tempero. Raramente se projeta para o futuro; mas acontece. Ela tem uma tendência natural a voltar. São experiências pessoais de quem escreve no mais das vezes. Outras, desprendem-se para se tornar universais. O amor. A morte. A amizade. Toda essa chatice acima não sei pra quê.
Fato é que quando decidi publicar as crônicas também em inglês imediatamente me veio à memória um escorregão que tive na beira do Cayuga Lake, Ithaca, NY. Não tenho a menor idéia psicanalítica da conexão. Estávamos visitando amigos, a Cris e o Nando, e fomos ver esse lago congelado. O Nando sempre filmou tudo, desde moleque. De vez em quando até ameaça nos grupos divulgar os vídeos comprometedores que amealhou ao longo da vida. E ele tem vários.
Deve ter esse vídeo até hoje. Ele se diverte, conta essa história do lago pra todo mundo. Ele estudava em Cornell e ambos nos acolheram muito bem; diversão pura. Desalojamos o Nando da mesa de estudo dele, fomos conhecer Cornell e passeamos pela região. As cervejas, todas regionais, eram colocadas na sacada para gelar. Nevava. Num estalo falei para ele, cara vou assistir um julgamento americano, já tinha pego por indicação do meu professor o telefone de Tom Cramer, um advogado local formado em Syracuse.
Em meu inglês difícil daquele tempo ele duvidou que eu ligasse. Liguei. Conversei com Tom sobre o tempo, sobre o Brasil e no dia seguinte fui ao escritório dele. Brothers. Enquanto isso o Nandinho cascando o bico do lado, torcendo para que eu falasse merda. Louco para que eu falasse merda. De cara me chamou a atenção as maquinetas de cartão de crédito na entrada do escritório. Entro na sala dele, conversamos e de repente ele aponta para uma foto em preto e branco.
-Você sabe quem é?
-Lógico, João Gilberto e seu banquinho.
E cantei em Português “um cantinho e um violão...”. O cara é aficionado pelo Brasil. Manja mais de música brasileira do que muito brasileiro tupiniquim. Já veio pra cá várias vezes. De volta ao Brasil, mandei a ele 3 CDs de MPB, um deles Tom e Elis Regina cantando juntos.
-E aí chegou?
-Chegaram, mas tive que pagar os impostos! Dei riscada e pedi desculpas. Não perdi a amizade, até hoje falo com ele por email. No dia seguinte ele me levou ao Fórum e pude assistir um murder trial. Fascinado, juridicamente falando, for god's sake, assisti no plenário o vídeo do réu gravado em seu primeiro interrogatório ainda na delegacia. Como nos filmes. E, aí, algo que não entendo nas filmagens brasileiras de um modo geral.
Por que as audiências, as prisões e os procedimentos jurídicos são tão diferentes na arte, na ficção, para a realidade; enquanto os americanos os reproduzem quase que fielmente em seus filmes? Distorcemos a realidade da Justiça Brasileira ao retratá-la. Eu não tenho a resposta. Perdemos uma grande chance de mostrar a miséria das cadeias e o tempo que se leva para julgar um processo. As dificuldades próprias do sistema judiciário brasileiro deveriam mais fielmente mostradas. As exceções das quais me recordo são “Estação Carandiru” e “Meu nome não é Johnny”, este sobre a vida de Guilherme Estrella. Aquele sobre a demolida Carandiru.
Sou um defensor veemente da desburocratização do sistema processual brasileiro. A audiência de custódia é um exemplo de como demoramos para absorver bons exemplos da common law, de questionar de como certos ritos e procedimentos não estão funcionando.
Dar transparência a essa realidade é um grande passo para a conscientização de mudança. Antes que eu me esqueça; vou checar se o Nandinho ainda tem o vídeo.
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